Lego, Gênero e Exageros da Hermenêutica Contemporânea: Um Ensaio Crítico
- Andre Rodrigues Costa Oliveira
- 6 de jun.
- 3 min de leitura
Nas últimas décadas, assistimos a uma crescente tentativa de reinterpretação dos símbolos e objetos cotidianos à luz das discussões de gênero e identidade. Em alguns casos, essas releituras abrem portas para reflexões legítimas sobre estruturas normativas ocultas nas práticas mais banais da cultura. Em outros, porém, beiram o paroxismo interpretativo. A acusação feita por uma visita autoguiada no Museu de Ciências de Londres de que os blocos de montar Lego podem ser “anti-LGBT” se insere claramente neste segundo grupo, onde a hermenêutica degenera em delírio simbólico.
O absurdo da analogia anatômica
A crítica baseia-se na alegação de que os blocos Lego representam papéis de gênero binário: os pinos seriam “partes masculinas” e os orifícios, “partes femininas”, sendo o encaixe um ato de “acoplamento”. Em primeiro lugar, essa leitura sexualizante do brinquedo infantil é profundamente redutora e projetiva. Blocos de montar são, acima de tudo, ferramentas de desenvolvimento cognitivo, motor e criativo. Carregá-los de conotações sexuais ou anatômicas parece mais refletir uma obsessão hermenêutica do intérprete do que qualquer intenção objetiva da empresa criadora.
Há uma inversão preocupante em curso: o símbolo deixa de ser lido a partir de seu uso cultural comum e passa a ser reinterpretado como uma mensagem cifrada, supostamente repressora ou excludente. Mas quem de fato, na experiência ordinária, vê em blocos de montar uma metáfora para genitais ou para a heteronormatividade? A ausência de dados, referências acadêmicas ou estatísticas nessa afirmação é eloquente: não se trata de um estudo de caso, mas de uma opinião travestida de crítica institucional.
O colapso do pensamento simbólico
Esse tipo de análise tem origem em escolas de pensamento pós-estruturalistas que, com méritos iniciais, desnaturalizaram muitos conceitos herdados do iluminismo e da modernidade. Porém, quando levadas ao extremo, essas abordagens passam a operar com o que o filósofo Paul Ricoeur chamaria de “hermenêutica da suspeita” levada ao ridículo: tudo é uma construção de poder, toda forma é opressiva, todo gesto é um código secreto a ser desmascarado.
Paradoxalmente, ao tentar desconstruir a binariedade de gênero, essa leitura acaba reafirmando a centralidade fálica da linguagem: só se vê genitália porque tudo se tornou sexualmente codificado na mente do analista. É uma regressão simbólica. E mais: ao impor à criança que brinque com “blocos sem gênero”, o que se está fazendo é roubar dela o direito ao símbolo como território de livre associação e imaginação.
A colonização ideológica do cotidiano
Não se trata aqui de recusar a existência de problemáticas reais em torno da representatividade, da diversidade de gênero ou da crítica aos modelos heteronormativos. Essas discussões são fundamentais em vários contextos — sobretudo educacionais e institucionais. O problema surge quando se tenta colonizar todos os aspectos da vida cotidiana com uma lente ideológica, sobretudo quando isso ocorre em instituições públicas, como um museu de ciências, que deveria se pautar por evidências, rigor pedagógico e responsabilidade científica.
Infelizmente, esse tipo de interpretação enfraquece as causas que diz defender, pois gera reações legítimas de ceticismo, zombaria ou desconfiança generalizada. Quando tudo se torna “um problema de gênero”, nada mais é levado a sério. A crítica legítima se dilui no ruído da paranoia interpretativa. Isso não é avanço: é caricatura.
O risco da dessacralização da infância
Há ainda um elemento mais grave nesse episódio: a erotização simbólica de objetos infantis. Ao projetar a lógica genital em peças de brinquedo, corre-se o risco de perturbar a sacralidade da infância, etapa do desenvolvimento marcada por uma relação livre, simbólica e não sexualizada com o mundo. Freud já alertava que a infância tem sua própria lógica simbólica, e que a antecipação precoce da consciência sexual pode gerar distorções e recalques profundos.
Brincar com Lego não é um ensaio sobre sexo. É um exercício de imaginação. Trens, naves, castelos, robôs, pontes, animais — não há limites para o que a mente infantil pode construir. Inserir a sombra do discurso sexual no coração da ludicidade é, paradoxalmente, uma forma de colonização moral.
Conclusão: pela restauração do bom senso
O episódio da crítica aos blocos Lego no Museu de Ciências de Londres revela, mais do que um problema com a empresa dinamarquesa, uma crise de discernimento no debate público contemporâneo. A ânsia por encontrar opressão em todos os lugares tem nos levado à perda de critérios, à infantilização do discurso crítico e à corrosão do pensamento simbólico.
O mundo precisa, sim, de mais inclusão e representatividade. Mas também precisa de seriedade, método e bom senso. A luta por direitos e diversidade não será vencida por delírios interpretativos, mas por argumentos sólidos, exemplos concretos e, sobretudo, pela defesa de um humanismo lúcido — onde a infância ainda possa brincar em paz com seus blocos de montar.
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